Multimodadlidade|Multimidialidade

Por João Roberto Antunes

Partindo-se das teorizações propostas por Pierre Lévy (2010), é importante compreender, primeiramente, que, para ele, mídia é o suporte por meio do qual a informação é veiculada (rádio, televisão, meio impresso, internet, etc.). Nesse sentido, o termo multimídia deve ser entendido como aquilo que emprega diversos suportes ou múltiplos meios de comunicação para a transmissão de uma dada mensagem, como uma instalação que se vale de mais de um desses suportes, por exemplo. A multimodalidade se configura, por sua vez, quando um dado objeto é capaz de mobilizar diferentes modalidades sensoriais (visão, audição, tato e sensações proprioceptivas). Seguindo esses pressupostos, a literatura digital, por ser produzida para ser fruída em uma tela de computador (que é metamídia, já que incorpora todas as mídias em si), deve ser concebida como multimodal (e não multimídia). Em resumo, um objeto literário digital se presentifica por meio da metamídia que suscita no leitor/interator distintas sensações visuais, sonoras e proprioceptivas.

Hayles (2009), ao expor uma lista em que arrola as quatro principais características do texto em meio digital, sustenta, na estruturação de seu segundo tópico, que a multimodalidade exerce papel fulcral no que diz respeito aos aspectos composicionais de tais textos. Desse modo, exprime que

O texto mediado por computador tende a ser multimodal. Porque texto, imagem, vídeo e som podem todos ser representados como código binário, o computador passa a ser, como Lev Manovich sustenta, a mídia que contém todas as outras mídias em si mesma. A natureza crescentemente visual da World Wide Web ilustra vividamente essa questão, assim como o crescente número de websites contendo filmes no QuickTime e videoclipes. (HAYLES, 2009, p. 167, grifos da autora).

Apesar do fato de Hayles ter sido um pouco sintética em sua abordagem concernente à multimodalidade, não propondo uma definição tão sólida para o conceito e citando, de uma forma bem genérica, sua tendência em textos mediados por computador, pode-se delimitar o enfoque e afirmar que a configuração multimodal, além de estar muito presente em quaisquer espécies de textos que circulam em rede, está proeminente, também, em obras literárias digitais. Todavia, essa terminologia tem sido frequentemente trocada pela nomenclatura “multimídia”, embora ambas estejam sendo empregadas com o mesmo sentido nos estudos, nas pesquisas e nas teorias referentes ao campo da Literatura Digital Brasileira, conforme observa Gritti (2020, p. 15-16).

No entanto, embora se tenha o dado de que aquilo que pode ser conceitualizado como “multimodalidade” tem aparecido nos estudos teóricos da Literatura Digital, torna-se imprescindível a realização de uma reflexão mais aprofundada acerca do termo, de maneira a construir uma metalinguagem consistente e coerente, possibilitando, então, que haja um entendimento integral acerca dos objetos que, na Literatura Digital, podem ser caracterizados como obras literárias com aspectos multimodais. 

Nesse sentido, conforme menciona Lévy (2010), é importante que se compreenda, primeiramente, quais são os significados dos termos “mídia” e “multimídia”, já que o senso comum associa, inapropriadamente, multimídia à multimodalidade. Assim, pode-se postular que “A mídia é o suporte ou veículo da mensagem. O impresso, o rádio, a televisão, o cinema ou a Internet, por exemplo, são mídias.” (LÉVY, 2010, p. 64, Grifo do autor). Em consonância, como se deveria pressupor, “O termo “multimídia” significa, em princípio, aquilo que emprega diversos suportes ou diversos veículos de comunicação.” (LÉVY, 2010, p. 67). Mas, infelizmente, segundo o mesmo autor, é raro que se conceba “multimídia” dessa maneira. É comum, conforme já exposto anteriormente, que a palavra seja empregada no lugar de “multimodalidade”, sendo concebida, assim, como aquilo que é e deve ser, conceitualmente, a própria multimodalidade. Mas, enfim, qual é o significado daquilo que pode ser urdido como “multimodal”? De acordo com Lévy (2010, p. 67),

[…] a informação tratada pelos computadores já não diz respeito apenas a dados numéricos ou textos (como era o caso até os anos 70), mas também, e cada vez mais, a imagens e sons. Portanto, seria muito mais correto, do ponto de vista linguístico, falar de informações ou de mensagens multimodais, pois colocam em jogo diversas modalidades sensoriais (a visão, a audição, o tato, as sensações proprioceptivas).

Nessa perspectiva, é válido retomar, só que de uma maneira mais meticulosa e cuidadosa, que o computador pode ser tratado, indubitavelmente, como “[…] a mídia que contém todas as outras mídias em si mesma”, assim como Hayles (2009, p. 167) sustenta, parafraseando elucubrações de Lev Manovich. É importante ratificar essa questão para que os conceitos de multimídia e multimodalidade não sejam mais confundidos, uma vez que, aqui, as proposições de Pierre Lévy (2008) são tidas como pressupostos de base.

Assim, expandindo essas reflexões de Hayles (2009), Manovich (2005), de fato, postula que as funções do computador, bem como a imagem que o público tinha dele foram sendo, a partir dos anos noventa, modificadas. Dessa forma, “No fim da década, quando o uso da Internet se tornou habitual, a imagem que o público tinha do computador já não era somente a de um instrumento, mas a de uma máquina midiática universal que podia ser usada não somente para criar, mas, também, para armazenar, distribuir e acessar todas as mídias.” (MANOVICH, 2005, p. 119-120, tradução minha). É nesse sentido, portanto, que “[…] a nova mídia [o computador, neste caso] é pós-mídia ou metamídia, já que usa antigas mídias como seu material primário.” (MANOVICH, 2005, p. 46). Isso se deve ao fato de que

O computador ligado em rede atua como um telefone, ao oferecer a comunicação pessoa-a-pessoa em tempo real; como uma televisão, ao transmitir filmes; um auditório, ao reunir grupos para palestras e discussões; uma biblioteca, ao oferecer grande número de textos de referência; um museu, em sua ordenada apresentação de informações visuais; como um quadro de avisos, um aparelho de rádio, um tabuleiro de jogos e, até mesmo, como um manuscrito, ao reinventar os rolos de textos dos pergaminhos. (MURRAY, 2003, p. 41).

Destarte, frisa-se, mais uma vez, o quão errôneo é tratar o computador e, por conseguinte, a literatura digital, como multimídias, já que o computador deve ser concebido, na verdade, como uma metamídia, dada a sua capacidade imanente de compilar todas as mídias, podendo, dessa forma, por meio da mediação de uma tela, mobilizar, ao mesmo tempo ou não, imagens e elementos verbais, bem como ser rádio, televisão, cinema, mas, prioritariamente, fazer o seu papel de possibilitar a navegação em rede.

Nesse diapasão, adentrando nas questões que tangem à modificação dos protocolos de leitura na chamada era digital, bem como no que concerne às configurações multimodais da literatura que efervesceu nesse período, a saber, a literatura digital, pode-se concluir que, se na contemporaneidade está presente aquele leitor que pode ser chamado de “imersivo” (SANTAELLA, 2004), haja vista suas “[…] grandes transformações sensórias, perceptivas e, consequentemente, também transformações de sensibilidade […]” (SANTAELLA, 2004, p. 34), isso se deve ao fato de que os textos em rede têm se tornado, sobremaneira, plurissensoriais (SANTAELLA, 2004), também podendo ser compreendidos, nessa linha de análise, como multimodais.

Desse modo, é inegável que a multimodalidade se evidencia nas produções literárias digitais, sobretudo nas produções poéticas, dada a

[…] grande variedade de elementos verbais, imagéticos e sonoros que se apagam, se substituem, se desmultiplicam, deslizam ou se deslocam sob várias formas, interferindo com a atenção no cruzamento destas exigências – a da significação articulada (verbalidade), a de sentido plástico (figuralidade) e a de sentido acústico (sonoridade). (REIS, 2012, p. 262).

Assim, em consonância com Hayles (2009, p. 167), citada acima, é correto estabelecer a proposição de que a multimodalidade é, senão uma máxima, uma das condições para a existência da literatura digital, já que “É a multimodalidade dessa poesia [e de outros gêneros também] que a especifica, uma vez que leva o seu leitor a estabelecer relações entre linguagens expressivas diversas, usando simultaneamente diferentes meios perceptivos.” (ROCHA, 2014, p. 177).

Logo, é crível que se postule que nem toda multimodalidade estará alicerçada na multimídia, embora toda multimídia e metamídia (o computador, neste caso, com uma expansão dos horizontes para a literatura digital) sempre serão multimodais. 

Referências bibliográficas

GRITTI, Gabriela G. Literatura Digital Brasileira: Cartografia da Produção Crítica. Relatório de Pesquisa – ICT/SR. Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

HAYLES, N. Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Ed. UPF, 2009. Tradução de: Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buchweitz.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2010. Tradução de: Carlos Irineu da Costa.

MANOVICH, Lev. El lenguaje de los nuevos medios de comunicación: La imagen en la era digital. Barcelona: Paidós Comunicación, 2005. 

MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e ideia: dez definições. In: LEÃO, Lucia. O chip e o caleidoscópio: Reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Senac São Paulo, 2005. p. 25-50.

MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. Tradução de: Elissa Khoury Daher e Marcelo Fernandez Cuzziol.

REIS, Pedro. Media digitais: novos terrenos para a expansão da textualidade. Texto Digital, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 256-272, dez. 2012. ISSN 1807-9288. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/textodigital/article/view/1807-9288.2012v8n2p256/23639>. Acesso em: 14 set. 2020.

ROCHA, Rejane. Contribuições para uma reflexão sobre a literatura em contexto digital. Revista da Anpoll, Florianópolis, n. 36, p. 160-186, Jan./Jun. 2014. Disponível em: < https://revistadaanpoll.emnuvens.com.br/revista/article/view/680>. Acesso em: 14 set. 2020.

SANTAELLA, Lucia. Três tipos de leitores: o contemplativo, o movente e o imersivo. In: SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. Cap. 1. p. 15-35.