Literatura Digital|Literatura eletrônica

Por João Roberto Antunes

Apesar de apresentar uma multiplicidade de nomenclaturas e uma instabilidade em seu cerne, a literatura digital não pode ser confundida com literatura digitalizada. Assim, entende-se por literatura digital aquela literatura que, no contexto das novas mídias e dos novos espaços da digitalidade, faz uso das suas potencialidades, funcionalidades e especificidades, além de lidar com as suas limitações. Em outras palavras, é uma literatura que experimenta diretamente com o código ou com os meios digitais, de tal forma que seria absolutamente impossível que fosse meramente transposta ao papel. A literatura digital tem ganhado outros contornos e novas propostas teórico-epistemológicas em contexto latino-americano, principalmente em virtude das peculiaridades das produções realizadas no Brasil e nos demais países da região.

Se os protocolos de leitura, bem como os tipos de leitores têm mudado com o passar do tempo (SANTAELLA, 2004), é sinal de que os modos de se produzir literatura também têm sido alterados. Assim, com todas essas vicissitudes, a semântica da palavra “literatura” tem sido, constantemente, posta em xeque. Torna-se tarefa extremamente difícil para estudiosos, pesquisadores e professores de literatura a proposição de uma conceitualização sólida, estática e indissolúvel para o léxico. Isso se intensifica ainda mais na chamada era digital, sobretudo com o advento da literatura digital, que, em seu cerne, foi responsável por causar um estremecimento no que diz respeito à ilusória estabilidade do que se entende (ou se entendia?) por literatura.

Nesse sentido, a partir de um olhar mais aprofundado, é fácil de se perceber que, apesar de ser uma tarefa difícil, como já mencionado, os pesquisadores têm se esforçado para tentarem instrumentalizar proposições acerca da natureza da literatura digital. Essa dificuldade quase que intrínseca advém, principalmente, do fato de que essa espécie de literatura se configura como um gênero emergente, que tem sido estruturado “[…] após quinhentos anos de literatura impressa (e, naturalmente, após bem mais do que isso de tradição oral e manuscrita).” (HAYLES, 2009, p. 21).

Dessa maneira, é muito comum, mormente pela falta de visibilidade do campo, que as pessoas, de um modo geral, tenham a tendência de apresentar concepções errôneas ou, até mesmo, visões simplórias e não tão sistematizadas acerca da literatura digital. Assim, quando indagadas sobre o que é literatura digital, suas respostas, frequentemente, fazem referências a e-books, a textos digitalizados e a todos os tipos de produção literária que circulam em rede.

Nessa esteira de reflexões, Claudia Kozak (2019, p. 2-3, tradução minha) afirma que

“[…] para a maioria das pessoas, a literatura continua sendo algo associado ao livro e à cultura impressa. No máximo, ao pensar na vinculação entre literatura e mundo digital, aparece a digitalização de textos em primeiro plano; literatura transposta para sua leitura em dispositivos digitais como os e-readers, por exemplo.”

A esse respeito, a pesquisadora chilena Carolina Gainza (2018, p. 10, tradução minha, grifo meu) afirma:

Quero esclarecer que, quando emprego o conceito de literatura digital, não me refiro àquela literatura cuja presença na rede se limita meramente a ser uma versão digitalizada do formato impresso. Muito menos nos referimos a obras que simplesmente tratam do tema da cultura digital. A literatura digital é parte de uma tradição de experimentação literária com a tecnologia […]

É sob a perspectiva da experimentação literária com a tecnologia que os principais teóricos do campo da literatura digital se embasam em suas elucubrações e, mais do que isso, é sob essa ótica que a literatura digital deve, de fato e a priori, ser concebida. Partindo-se desse pressuposto, é possível constatar e ratificar que, desde meados da década de 1960, escritores, autores e poetas de várias partes do globo começaram a se valer de outras mídias (que não o livro impresso) para a produção literária, sobretudo para a criação poética. Sobre esse tema, Gainza ressalta, em nota, que o Brasil é uma referência extremamente importante no que tange à utilização de tecnologias eletrônicas para a plasmação poética, dado que o primeiro poema eletrônico foi produzido, no país, em 1960 (GAINZA, 2018).

Contudo, apesar de todos esses antecedentes, foi somente em 1999, com a criação do grupo Electronic Literature Organization (ELO), que o termo “literatura eletrônica” foi cunhado. Terminologia consolidada, especificamente, por Noah Wardrip-Fruin, crítico de literatura eletrônica e chefe da comissão da ELO (MARTINS; RAMOS, 2014), “A literatura eletrônica, geralmente considerada excludente da literatura impressa que tenha sido digitalizada, é

[…] “nascida no meio digital”, um objeto digital de primeira geração criado pelo uso de um computador e (geralmente) lido em uma tela de computador.” (HAYLES, 2009, p. 20).

Após a ascensão da expressão “literatura eletrônica” (até mesmo antes, inclusive), diversos pesquisadores, estudiosos e autores passaram a postular uma multiplicidade de outros designativos para essa literatura emergente:

São muitos os nomes que a literatura no ciberespaço e a profusão quantitativa e qualitativa de seus formatos, protótipos e estilos vêm recebendo, tais como: literatura gerada por computador, literatura informática, infoliteratura, literatura algorítmica, literatura potencial, ciberliteratura, literatura generativa, hiperficções, texto virtual, geração automática de texto, poesia animada por computador, poesia multimídia (MOURÃO, 2001, p. 4; COSTA SANTOS, 2010). (SANTAELLA, 2012, p. 230-231).

Nesse diapasão, Rocha expande as reflexões ao afirmar que as dificuldades em se estabelecer uma definição única e solidificada para a literatura digital se reverberam nas questões que dizem respeito às diversas nomenclaturas existentes para se fazer referência à mesma, como observado anteriormente:

Tais dificuldades fazem-se sentir até mesmo na impossibilidade de adoção de uma terminologia única e variações podem ser observadas tanto no que diz respeito ao recorte temporal – p. e. o termo ciberlitertura, embora popular entre meados dos anos 90 e início dos anos 2000 é, atualmente, muito pouco empregado da bibliografia teórico-crítica sobre o assunto –, quanto no que diz respeito às regiões geográficas de onde provém os estudos – p. e. no contexto norte americano, adota-se o termo electronic literature (literatura eletrônica); no contexto francês, littérature numérique (literatura numérica); no contexto canadense francófono, litteratture hypermediatique (literatura hipermídia); no contexto latino-americano tem se consolidado o termo literatura digital. (ROCHA, 2020). 

Destarte, aqui, utiliza-se a denominação literatura digital, uma vez que

“[…] é um conceito mais apropriado para se referir ao que Hayles denominou literaturas “digitally born/ nativas digitais”, obedecendo, além disso, à discussão conceitual que tem se consolidado na América Latina […]” (GAINZA, 2018, p. 10, tradução minha).

Ademais, como tem demonstrado a pesquisa de Nair Renata Amâncio, integrante do projeto Repositório da Literatura Digital Brasileira,

“[…] assumimos o uso do termo literatura digital, por entender a técnica “eletrônica” como uma etapa da evolução tecnológica e por estarmos, nesse momento, diante da realidade digital, o que quer dizer que o digital abarca o eletrônico, o informático, o ciber e tantos outros.” (AMÂNCIO, 2020, p. 22). Logo, parte-se da hipótese de que talvez seja por isso que, em se tratando da situação da América Latina, optou-se/escolheu-se/preferiu-se pela designação literatura digital (que é preponderante, mas não exclusiva).

Então, pode-se afirmar que literatura digital, terminologia que tem sido adotada em contexto latino-americano, em seu âmago, uma vez sendo uma experimentação literária com a tecnologia, possui uma relação direta com o código computacional. 

Ao contrário de um livro impresso, o texto eletrônico não pode, literalmente, ser acessado sem o código ser executado. Críticos e estudiosos de arte digital e literatura deveriam, por conseguinte, considerar o código fonte parte da obra, algo que é ressaltado pelos autores que inserem no código informações ou observações interpretativas cruciais para a compreensão da obra (HAYLES, 2009, p. 47).

É por esse motivo que Hayles defende que as máquinas inteligentes, assim como os seres humanos, possuem uma multiplicidade de camadas de processos, uma vez que, na literatura digital, percebe-se a associação fulcral que se configura entre humano-computador,

“[…] ligados entre si por malhas de retroalimentação e alimentação […]” (HAYLES, 2009, p. 65).

Assim,

“Em sua essência, o código é a linguagem que dá vida a estas produções, às quais tem se tornado cada vez mais sofisticadas e complexas, já que, com o desenvolvimento de tecnologias de machine learning, podemos nos deparar com algoritmos que são capazes de escrever poemas, e inclusive uma novela, completamente por si mesmos.” (GAINZA, 2019, p. 121, tradução minha).

Portanto,

“[…] as tecnologias digitais fazem mais do que marcar a superfície dos romances impressos contemporâneos. Elas também colocam em jogo dinâmicas que interrogam e reconfiguram as relações entre autores e leitores, seres humanos e máquinas inteligentes, código e linguagem. Os livros não vão desaparecer, mas também não vão escapar dos efeitos das tecnologias digitais que os interpenetram. Mais que um modo de produção material (embora o seja), a digitalidade tornou-se a condição textual da literatura do século XXI.” (HAYLES, 2009, p. 185).

Referências bibliográficas

AMÂNCIO, Nair Renata. Revista Texto Digital: um espaço para a emergente literatura digital brasileira. Qualificação de mestrado – CAPES. 2020. Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, 2020.

FUNKHOUSER, Christopher. Prehistoric Digital Poetry: An Archaeology of Forms, 1959–1995. Tuscaloosa: The University of Alabama Press, 2007.

GAINZA, Carolina. Código, lenguaje y estéticas en la literatura digital chilenaPerífrasis: Revista de Literatura, Teoría y Crítica, Bogotá, v. 10, n. 20, p. 117-130, dez. 2019. Disponível em: <http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2145-89872019000200117>. Acesso em: 06 ago. 2020

GAINZA, Carolina. Narrativas y poéticas digitales en América Latina. Producción literaria en el capitalismo informacional. Remediables, Editorial Cuarto Propio. México, 2018.

HAYLES, N. Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Ed. UPF, 2009. Tradução de: Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buchweitz.

KOZAK, Claudia. Derivas literarias digitales: (des)encuentros entre experimentalismo y flujos culturales masivos. Revista Heterotopías del Área de Estudios Críticos del Discurso de FFyH, Córdoba v. 2, n. 3, p. 1-24, jun. 2019. Disponível em: <https://revistas.unc.edu.ar/index.php/heterotopias/article/view/24768>. Acesso em: 04 nov. 2020.

MARTINS, A.; RAMOS, P. Tendências vanguardistas: a literatura eletrônica e o jovem leitor imersivo. Via Atlântica, n. 26, p. 61-80, 4 nov. 2014. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/84313>. Acesso em: 06 ago. 2020.

ROCHA, Rejane C. Literatura digital. In: RIBEIRO, Ana Elisa; CABRAL, Cleber Araújo (org.). Tarefas da edição: pequena mediapédia. Belo Horizonte: Impressões de Minas, 2020. p. 80-84. Disponível em: http://www.letras.bh.cefetmg.br/wp-content/uploads/sites/193/2019/10/Tarefas-da-Edic%CC%A7a%CC%83o-arquivo-digital-07-10-20.pdf. Acesso em: 20 out. 2020.

SANTAELLA, Lucia. Três tipos de leitores: o contemplativo, o movente e o imersivo. In: SANTAELLA, Lucia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. p. 15-35. 

SANTAELLA, Lucia. Para compreender a ciberliteraturaTexto Digital, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 229-240, dez. 2012. ISSN 1807-9288. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/textodigital/article/view/1807-9288.2012v8n2p229>. Acesso em: 06 ago. 2020.