Interatividade|Agência

Por João Roberto Antunes

A interatividade, em se tratando do meio digital, constrói-se muito mais como um problema do que como algo definitivamente estabelecido, uma vez que o ambiente digital é, por definição, interativo. No entanto, isso não significa que todas as obras literárias digitais, uma vez no universo da digitalidade, também sejam interativas. O simples ensejo de clicar, movimentar ou arrastar elementos não torna um determinado objeto mais interativo do que outro. Do ponto de vista teórico aqui adotado, portanto, seria muito mais coerente se pensar, no campo da literatura digital, em níveis distintos de agência, isto é, da capacidade que um usuário tem para agir sobre uma dada obra, realizando ações que promovam/incitem/viabilizem a produção de sentido e a construção de uma poética específica.


Pierre Lévy, no início do quarto capítulo de sua obra intitulada Cibercultura (2008), postula, de chofre, um desejo: “Como a interatividade é muitas vezes invocada a torto e a direito, como se todos soubessem perfeitamente do que se trata, gostaria de tentar, neste pequeno capítulo, uma abordagem problemática dessa noção.” (LÉVY, 2008, p. 81, grifo do autor). Analogamente, o intuito desta conceituação vocabular se constitui como uma tentativa de abordar, de maneira crítica e sistemática, a utilização do termo “interatividade” no âmbito da Literatura Digital, sobretudo a partir das especificidades da Literatura Digital Brasileira, haja vista o fato de que “A interatividade assinala muito mais um problema, a necessidade de um novo trabalho de observação, de concepção e de avaliação dos modos de comunicação, do que uma característica simples e unívoca atribuível a um sistema específico.” (LÉVY, 2008, p. 84).

Ora, nesse sentido, pode-se afirmar que o vocábulo “interatividade” não é exclusivo do ambiente digital e, por conseguinte, do campo da Literatura Digital. Na verdade, é um termo usado em muitas áreas do conhecimento e em diversas ocasiões enunciativas. Um estudante, por exemplo, pode se queixar das aulas de um determinado professor alegando que as atividades por ele propostas não são tão interativas. Nesse caso, a interatividade estaria totalmente interligada à falta de didatismo do docente, à mecanicidade de suas aulas e à ausência de alteridade durante suas explanações. 

No entanto, ao adentrar à esfera da digitalidade, a interatividade ganha um outro contorno. Como Lévy (2008) sustenta, o conceito se torna problemático. A esse respeito, Manovich (2005, p. 103, tradução minha) defende aquilo que denomina como “mito da interatividade”:

No que se refere aos meios que se baseiam no computador, o conceito de interatividade é uma tautologia. A moderna interface do usuário é interativa por definição pois, diferentemente das primeiras interfaces, como o processo por lotes, permite-nos controlar o computador em tempo real, manipulando a informação que se mostra na tela. Portanto, denominar <<interativos>> os meios informáticos carece de sentido; não faz senão afirmar o fato mais básico dos computadores.

Desse modo, a interatividade se constitui como uma característica intrínseca à interface do computador, que, por sua vez, exige que o usuário acione comandos, aperte botões, deslize, com o manuseio do mouse, pela tela, entre tantas outras peculiaridades. 

Murray (2003, p. 78, grifos meus), nessa esteira elucubrativa, define as quatro propriedades essenciais do ambiente digital:

Ambientes digitais são procedimentais, participativos, espaciais e enciclopédicos. As duas primeiras propriedades correspondem, em grande parte, ao que queremos dizer com o uso vago da palavra interativo; as duas propriedades restantes ajudam a fazer as criações digitais parecerem tão exploráveis e extensas quanto o mundo real, correspondendo, em muito, ao que temos em mente quando dizemos que o ciberespaço é imersivo.

Para  Murray (2003), assim, as características procedimental e participativa do computador, juntas, dão origem àquilo que se convencionou denominar vagamente como interatividade.

Nessa sintonia de reflexões, a pesquisadora estadunidense afirma que 

É surpreendente que esqueçamos o fato de que o novo meio digital é intrinsecamente procedimental, mas fazemos isso com frequência. Embora falemos de uma “hiperestrada da informação” e de “quadros de avisos” no ciberespaço, na realidade o computador não é, em sua essência, um condutor ou um caminho, mas um motor. Ele não foi projetado para transmitir informações estatísticas, mas para incorporar comportamentos complexos e aleatórios. Ser um cientista da computação é pensar em termos de algoritmos e heurística, ou seja, identificar constantemente as regras exatas ou gerais de comportamento que descrevem qualquer processo, desde calcular uma folha de pagamento até fazer voar um aeroplano.” (MURRAY, 2003, p. 78, grifo da autora).

Seguindo essa linha de raciocínio, portanto, a procedimentalidade imanente ao computador muito se coaduna com seu poder de programabilidade, isto é, relaciona-se com sua “[…] distintiva capacidade de executar uma série de regras.” (MURRAY, 2003, p. 78). No entanto, apesar de os novos meios serem programáveis (MANOVICH, 2005), isso não significa que, quando programados, eles passem a executar todas as operações de maneira automática. Na realidade, é preciso que um interator (MURRAY, 2003) execute tais comportamentos, assim como induza a produção de novos:

Achamos os ambientes procedimentais atraentes não apenas porque eles exibem comportamentos gerados a partir de regras, mas também porque podemos induzir o comportamento. Eles reagem às informações que inserimos neles. Assim como a propriedade de representação primária da câmera e do projetor de cinema é a reconstituição no tempo, a propriedade de representação primária do computador é a reconstituição codificada das respostas comportamentais. É isso o que, na maioria das vezes, se pretende afirmar quando dizemos que os computadores são interativos. Significa que eles criam um ambiente que é tanto procedimental quanto participativo. (MURRAY, 2003, p. 80).

Nesse diapasão, pode-se afirmar que Murray (2003) também considera o termo “interatividade” um tanto quanto problemático, já que opta por defender, como já mencionado, o fato de que os computadores são procedimentais e participativos, termos que seriam correspondentes à vaguidão do vocábulo “interatividade”.

A partir disso, os questionamentos que se colocam são os seguintes: sendo os novos meios (MANOVICH, 2005) interativos por natureza, bem como procedimentais e participativos (MURRAY, 2003), isso significa que se possa afirmar que todo objeto literário digital, uma vez sendo criado para ser lido em uma tela de computador (HAYLES, 2009), é, também, intrinsecamente interativo? Dessa forma, como essas questões estão sendo entendidas e incorporadas no âmbito da Literatura Digital, especificamente no que diz respeito à Literatura Digital Brasileira e, mais ainda, às discussões empreendidas pelo projeto Repositório da Literatura Digital Brasileira?

Isso posto, é importante ressaltar, primeiramente, que as discussões sobre “interatividade” levadas a cabo por Lévy (2008), Manovich (2005) e Murray (2003) não estão totalmente dirigidas ao âmbito da Literatura Digital, mas aos ambientes digitais em geral. Assim, por mais que tais discussões tenham legitimidade no campo, não se pode afirmar que, em virtude de a interface do computador ser interativa, como tais autores postulam, a consequência direta seja que todas as obras literárias digitais também sejam interativas.

A discussão sobre interatividade que mais se aproxima das especificidades da Literatura Digital é aquela empreendida por Aarseth (1997), autor que inova o campo das textualidades digitais ao propor o conceito de “literatura ergódica” (AARSETH, 1997, 2004). Apesar disso, ele não deixa de conceber a interatividade como um problema, o que se coaduna com as reflexões propostas pelos autores acima citados

O termo “interativo” é particularmente problemático, como Moulthrop (1989, 261) e Joyce (1991, 79) apontaram. Mesmo assim, a invocação ideológica da “ficção interativa” é apropriada repetidamente como um rótulo para os hipertextos literários por seus proponentes, que vêem a hiperficção como o próximo passo de jogos de aventura na escada evolucionária (cf. Bolter e Joyce 1987, Douglas 1991 Moulthrop 1994b). (AARSETH, 1997, p. 88, grifos meus)

Assim, Aarseth (1997) problematiza a definição de um gênero de literatura digital que teria a interatividade como uma de suas características primordiais. As nomenclaturas desse gênero oscilam entre “ficção interativa” e “hiperficção”. Simplificadamente, no âmbito das discussões do projeto Repositório da Literatura Digital Brasileira, “narrativa hipertextual” tem sido a expressão utilizada para definir essas narrativas, que, por seu turno, são pautadas no hipertexto.

No entanto, o mapeamento das obras literárias digitais brasileiras feitas pelo projeto Repositório da Literatura Digital Brasileira evidencia a preponderância dos poemas em Flash no Brasil, o que culmina, em um primeiro momento, na secundarização da narrativa hipertextual no que tange à tentativa de construção de uma tradição literária digital brasileira.

Todas essas questões foram elencadas para que, finalmente, se consiga postular que, apesar de a interatividade se configurar como uma condição intrínseca ao computador, isso não significa que todos os objetos literários digitais sejam interativos, como já citado acima. Os poemas em Flash, por exemplo, que constituem 60% das obras digitais brasileiras mapeadas, necessitam, amiúde, apenas de um clique para serem executados e, assim, fruídos. Dessa maneira, logo após a realização do clique inicial, o poema se projeta e se edifica na tela de modo automático. Desse modo, a indagação inquietante é a seguinte: somente um clique inicial faz com que essas obras possam ser denominadas como interativas? Ou, ainda, uma vez que tudo que está na esfera digital é, por definição, interativo, como caracterizar processos e obras (no caso da literatura), que efetivamente necessitam da colaboração/ação/performance do leitor para serem realizados/apreendidos/fruídos?

O conceito de agência, preconizado por Murray (2003), pode resolver o impasse crítico, já que sua aplicabilidade contribui para a especialização da vagueza causada pelo uso do termo “interatividade”. Logo, pode-se afirmar que as obras literárias digitais apresentam níveis distintos de agência (MURRAY, 2003). De acordo com a estudiosa (2003, p. 127), “Agência é a capacidade gratificante de realizar ações significativas e ver os resultados de nossas decisões e escolhas.”. O nível de agência em uma obra digital será mais elevado quando ela apresentar uma maior possibilidade de que o interator realize “ações significativas”. Quando não houver essa possibilidade, o nível de agência será menor. Não obstante, é válido destacar que “Devido ao uso vago e difundido do termo “interatividade”, o prazer da agência em ambientes eletrônicos é frequentemente confundido com a mera habilidade de movimentar um joystick ou de clicar com um mouse. Mas atividade por si só não é agência.” (MURRAY, 2003, p. 128).

Portanto, quando um determinado objeto literário concede ao interator o ensejo de agir sobre ele, isto é, de realizar “ações significativas” nos universos da diegese, da exegese e/ou da poética e, assim, alterar, muitas vezes, a sua própria significação, se estará diante de uma obra com aspectos que dão vazão à interatividade, porque, em suma, na esfera da Literatura Digital, a interatividade se interliga à capacidade de agência. 

Referências bibliográficas

AARSETH, Espen. Cybertext: Perspectives on Ergodic Literature. London: The Johns Hopkins University Press, 1997.

AARSETH, Espen. La literatura ergódica. In: D. SÁNCHEZ MESA (ed.). Literatura y Cibercultura. 1a ed. Madrid: Arco, 2004, p. 117-145.

HAYLES, N. Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Ed. UPF, 2009. Tradução de: Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buchweitz.

LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 2010. Tradução de: Carlos Irineu da Costa.

MANOVICH, Lev. El lenguaje de los nuevos medios de comunicación: La imagen en la era digital. Barcelona: Paidós Comunicación, 2005.

MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. Tradução de: Elissa Khoury Daher e Marcelo Fernandez Cuzziol.