Por João Roberto Antunes
Katherine Hayles (2009), ao discorrer sobre as especificidades da literatura digital, ressalta o fato de que essa espécie de literatura, assim como a literatura impressa, apresenta uma multiplicidade de gêneros e de formas. Desse modo, enumera, de acordo com o seu contexto de enunciação norte-americano, quais são os gêneros que reconhece como importantes para a tradição literária digital emergente e em processo de construção continuada:
Ficção em hipertexto, ficção na rede interligada, ficção interativa, narrativas locativas, instalações, “codework”, arte generativa e o poema em Flash não são um inventário exaustivo das formas de literatura eletrônica mas são suficientes para ilustrar a diversidade de campo, as complexas relações que surgem entre literatura impressa e literatura eletrônica, e o amplo espectro de estratégias estéticas que a literatura digital emprega. (HAYLES, 2009, p. 43, grifos meus).
Como Hayles (2009) disserta, os ambientes digitais concedem espaço à consolidação de formas que se estruturam como gêneros literários, mas que, por sua vez, não são únicos e exclusivos das chamadas novas mídias. Dentre eles, a ficção em hipertexto, segundo a mesma autora, foi o modo de produção precursor daqueles objetos que passaram a ser denominados, posteriormente, como obras digitais. Entretanto, com o passar do tempo, outras formas de se produzir literatura digital passaram a ser exploradas, de maneira que seus idealizadores pudessem se valer da multimodalidade e das infindáveis funcionalidades propiciadas pela Web para suas criações (HAYLES, 2009, p. 23-24).
Vertendo-se a conjuntura ilustrada para o cenário brasileiro, pode-se afirmar que, na realidade, as primeiras experimentações literárias digitais, em território nacional, já foram manifestações com um caráter estrutural poemático, diferentemente do que ocorreu em contexto norte-americano, em que os primeiros trabalhos de literatura digital estiveram vinculados a lexias. No entanto, embora não muito proeminente e em escala bem menor, a ficção em hipertexto também é um dos gêneros existentes na história da literatura digital brasileira, exercendo um papel relevante na tentativa de construção de uma tradição literária.
Todavia, é válido mencionar que o intuito deste vocábulo não é analisar detidamente os aspectos que compõem uma narrativa hipertextual, mas, sim, estabelecer uma historicização daquilo que se convencionou denominar como hipertexto e/ou hipermídia, conceitos imprescindíveis para o posterior entendimento do funcionamento dessas narrativas. Dessa maneira, surgem os seguintes questionamentos: O que é o hipertexto? Quais são as suas principais características? Em quais aspectos a ficção hipertextual se difere das obras convencionais do meio impresso? O hipertexto é um fenômeno imanente ao meio digital? Ou é algo que já existia (e ainda existe) na cultura impressa? Responder a essas questões é atitude fundamental para a compreensão da poética da hipertextualidade.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar a opção teórica utilizada aqui, que, entre outras questões, concebe os termos hipertexto e hipermídia como indistintos, seguindo os posicionamentos adotados por George P. Landow:
A expressão hipermídia simplesmente expande a noção de texto hipertextual ao incluir informação visual e sonora, assim como a animação e outras formas de informação. Visto que o hipertexto, ao poder conectar uma passagem de discurso verbal a imagens, mapas, diagramas e sons tão facilmente como a outro fragmento verbal, estende a noção de texto além do meramente verbal, não farei uma distinção entre hipertexto e hipermídia. Com hipertexto, pois, me referirei a um meio informático que relaciona informação tanto verbal como não verbal. Nesta rede, empregarei os termos hipermídia e hipertexto de maneira indistinta. (LANDOW, 2009, p. 25, tradução minha)
De chofre, pode-se dizer que “O hipertexto se caracteriza, pois, como um processo de escritura/ leitura eletrônica multilinearizado, multiseqüencial [sic] e indeterminado, realizado em um novo espaço de escrita.” (MARCUSCHI, 2001, p. 86). Esse novo espaço de escrita ao qual Marcuschi (2001) se refere diz respeito, obviamente, aos meios digitais, que potencializaram a disseminação massiva do ideal de hipertexto. Contudo, a origem do hipertexto é mais antiga do que se imagina. O que ocorre é que, como já mencionado, a digitalidade impulsionou a sua propagabilidade, oferecendo, além disso, ferramentas que puderam ser utilizadas para o aperfeiçoamento de um ideal que já havia sido concebido em outras épocas.
Na realidade, a palavra hipertexto foi cunhada por Theodor Holm Nelson na década de 1960 e “[…] se refere a um tipo de texto eletrônico, a uma tecnologia informática radicalmente nova e, ao mesmo tempo, a um modo de edição.” (LANDOW, 2009, p. 25, tradução minha). No entanto, apesar de ter sido uma terminologia estabelecida, sistematizada e instrumentalizada somente em meados de 1960, especificamente em 1964, a ideia de hipertexto enquanto abstração remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, isto é, a meados da década de 1940.
É nesse sentido que Ribeiro (2006, p. 3) afirma que
Bush teria sido o responsável pela concepção do hipertexto. Ainda não com esse nome ou com todas as propriedades atribuídas a ele, mas já algo com as características de fazer ligações entre informações por meio de nós, “encruzilhadas” virtuais e informacionais, por meio de uma máquina, à época já os sistemas informáticos e computacionais, embora em formatos bem menos compactos que os atuais.
Ora, Vannevar Bush, engenheiro, inventor e político estadunidense, foi o criador de uma máquina que ficou conhecida como Memex. Ainda segundo Ribeiro (2006, p. 4), Bush, após a publicação de um artigo seminal intitulado As We May Think (em tradução livre Como podemos pensar), passou a ser considerado o “pai” da ideia de hipertexto. Em tal artigo, ele descreveu as peculiaridades de Memex, que, por sua vez, “[…] não serviria apenas para guardar, mas que teria uma maneira inteligente de indexar e buscar, em caso de necessidade, a informação solicitada.” (RIBEIRO, 2006, p. 4). Na verdade, Bush andava percebendo, à sua época, que a experiência humana estava crescendo em um ritmo intenso, mas que, em contrapartida, as técnicas que estavam sendo utilizadas para o manejo dessas inúmeras informações não evoluíam significativamente (BUSH, 1945, p. 2; LANDOW, 2009, p. 33). Com isso, Bush resolveu criar uma máquina que apresentasse similaridades com o modo a partir do qual a mente funciona, ou seja, por meio de constantes associações de ideias. Foi nesse sentido, então, que criou Memex, capaz não somente de buscar e de recuperar informações de uma maneira rápida e eficaz, mas, também, de conceder ao usuário a possibilidade de adicionar notas e comentários às margens dos textos, bem como de interligá-los quando necessário. A partir de então, “[…] Bush propõe o conceito de blocos de texto unidos com links e também introduz os termos link, conexão, trajetos e trama para descrever a sua nova concepção de textualidade.” (LANDOW, 2009, p. 36).
Esses conceitos propostos por Bush são palavras que, hodiernamente, sempre estão coadunadas com o termo hipertexto, que foi cunhado, efetivamente, somente em 1960.
No início dos anos sessenta, os primeiros sistemas militares de teleinformática acabavam de ser instalados, e os computadores ainda não evocavam os bancos de dados e muito menos o processamento de textos. Foi contudo nesta época que Theodore [sic] Nelson inventou o termo hipertexto para exprimir a ideia de escrita/leitura não linear em um sistema de informática. Desde então, Nelson persegue o sonho de uma imensa rede acessível em tempo real contendo todos os tesouros literários e científicos do mundo, uma espécie de Biblioteca de Alexandria de nossos dias. Milhões de pessoas poderiam utilizar Xanadu, para escrever, se interconectar, interagir, comentar os textos, filmes e gravações sonoras disponíveis na rede, anotar os comentários, etc. […] Xanadu, enquanto horizonte ideal ou absoluto do hipertexto, seria uma espécie de materialização do diálogo incessante e múltiplo que a humanidade mantém consigo mesma e com seu passado. (LÉVY, 2004, p. 17-18).
O projeto Xanadu, levado a cabo por Nelson, foi responsável por desenhar uma grande rede de textos e dar corporeidade àquilo que Bush já havia concebido em décadas anteriores. Convencionou-se, portanto, a atribuir a origem dos termos hipertexto e hipermídia à Theodor Nelson.
Todavia, parafraseando Roger Chartier, Ribeiro (2006) afirma que essa cronologia destinada ao surgimento do termo hipertexto tende a ser um tanto quanto limitada a partir do momento em que enciclopédias e outras organizações textuais passam a ser consideradas hipertextuais, mesmo possuindo uma natureza muito distinta daquela inerente aos meios digitais. Assim, pensando-se na existência de enciclopédias, notas de rodapé, livros didáticos com caixas de textos, diagramas e esquematizações, bem como em algumas obras literárias específicas, o ideal de hipertexto se torna ainda mais antigo, remontando a um passado ainda pertencente à era de Gutenberg.
Não obstante, “É claro que o texto virtual permite concretizar certos aspectos que, no papel, são praticamente inviáveis: a conexão imediata, a comparação de trechos de textos na mesma tela, o “mergulho” nos diversos aprofundamentos de um tema, como se o texto tivesse camadas, dimensões ou planos.” (RAMAL, 2002, s/p, apud ENEM, 2013). É que a hipertextualidade é a condição definidora dos parâmetros que regem o mundo digital, distintamente do que ocorre no meio impresso, em que “[…] a diversidade dessas conexões, de possibilidades de intervenção do interator, defronta-se com constrangimentos da própria materialidade do suporte: há um limite razoável bem restrito quanto ao número de variações em que uma narrativa pode se desdobrar.” (KOMATSU, 2020, p. 25).
Nesse diapasão, ampliando as discussões realizadas por Marcuschi (2001), linguista citado no início deste verbete, pode-se postular que o hipertexto se caracteriza como
Um conjunto de nódulos unidos por vínculos que se ativam oprimindo um signo, uma imagem, uma marca, e que funciona, desse modo, como marcador do vínculo. Em um hipertexto mais ou menos complexo, em cada nódulo abrem-se vários vínculos, de modo que o leitor se vê constrangido a eleger, em cada caso, sua rota de leitura. (LADDAGA, 2002, p. 20).
Isso acontece porque,
À semelhança dos jogos, o hipertexto reage a um determinado conjunto de ações. Há um aspecto dinâmico em sua textualidade subordinado a um novo papel para o leitor, requisitado então a participar do processo criativo. Impelido a fazer escolhas que singularizam seu percurso de leitura, o leitor intervém na própria forma do texto. (KOMATSU, 2020, p. 12).
No caso de obras literárias consideradas hipertextuais, embora o interator (MURRAY, 2003) tenha certa liberdade de agir sobre a obra, realizando escolhas que o conduzem a um percurso de leitura singular, Laddaga (2002, p. 21-23) abandona essa postura entusiasta ao postular que o hipertexto sempre será constituído por perdas
No entanto, me interessa, neste caso, reter um aspecto da situação presente do hipertexto. O leitor particular se vê, em cada passo da leitura, constrangido a escolher, e aquilo que constrói na sua sequência de eleições está individualizado de uma maneira diferente da individualização do texto em livro. Numerosas especulações acerca do hipertexto supõem que o correlato de uma experiência de leitura hipertextual é uma conquista de controle por parte do leitor. Mas este incremento correlativo a uma perda. É que o hipertexto é não-disponível – ou, não é disponível do mesmo modo que o é o texto impresso. O hipertexto começa, se diria, a perder-se, e, por isso mesmo, não se deixa tornar comum, como é comum o texto impresso. Comunidade e solidão, experiência privada e experiência em comunidade se compõem em um e outro caso de maneira diferente. O leitor de hipertextos é um leitor mais solitário, confrontado cada vez mais com um processo que leva a marca do momento singular em que a leitura se realiza, e que está destinada a perder-se. Mas esta solidão está povoada. Por quem? Por espectros duplos de si mesmo. Segundo Joyce, é característico ao hipertexto sua capacidade de induzir seus leitores a uma experiência análoga à do “membro-fantasma”. A experiência do membro-fantasma é aquela em que alguém que perdeu de maneira traumática um membro (ou em acidente, ou em guerra, por exemplo) conserva durante algum tempo a sensação de possuí-lo. Mas em que sentido o leitor de “hipertextos suficientemente complexos” experimentaria uma situação como a de membro-fantasma? Em que, em cada bifurcação que o leitor pode tomar, ele optaria continuar a ler em outra linha, em outra ramificação, que permaneceria como o espaço negativo sobre o qual se recorta sua trajetória efetiva de leitura.
Portanto, mesmo com a contraposição entre liberdade de escolha e (in)consciência da concretização da(s) perda(s) no momento da eleição de uma determinada rota de leitura, o usuário de hipertexto constrói uma arquitetura textual (KOMATSU, 2020) idiossincrática, que, em sua totalidade, muito se assemelha ao modelo epistemológico do rizoma, teoria filosófica proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari (LANDOW, 2009).
Simplificando um pouco mais, como Manovich (2005) sustenta, o hipertexto, pelo fato de ser estruturado por meio de hiperlinks que conduzem o interator a outros espaços, pode ser visualizado como uma árvore que espalha seus galhos. Dessa maneira, o hipertexto pode ser denominado como multilinear (ou, conforme postulam alguns teóricos, não linear). No entanto, é válido mencionar que o processo de multilinearidade ou não linearidade está interligado ao domínio da arquitetura textual, isto é, ao modo como o hipertexto é construído. A ausência de linearidade, que parece ser a característica mais levantada e defendida pelos estudiosos, não pode ser confundida, no caso de narrativas hipertextuais, com a não linearidade temporal, que diz respeito ao domínio da história em si (que, na realidade, não é uma técnica inovadora, uma vez que a narração in media res já se encontra presente nas epopeias de Homero). Assim, toda narrativa hipertextual, por exemplo, é multilinear no que tange à arquitetura (algo novo quando comparado ao exercício de leitura totalmente linearizado – da esquerda para a direita e de baixo para cima), mas nem sempre na instância temporal, embora isso seja uma tendência nas narrativas contemporâneas.
Referências bibliográficas
BUSH, Vannevar. Como podemos pensar. Tradução livre de Fábio Mascarenhas e Silva. Disponível em: <<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5133811/mod_resource/content/1/BUSH_as%20we%20may%20think%20traduzido.pdf>>. Acesso em: 21 jan. 2021.
HAYLES, N. Katherine. Literatura eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Ed. UPF, 2009. Tradução de: Luciana Lhullier e Ricardo Moura Buchweitz.
KOMATSU, Flávio Vilela. Literatura digital: uma poética da hipertextualidade. 2020. 56 f. Qualificação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2020.
LADDAGA, Reinaldo. Uma fronteira do texto público: literatura e meios eletrônicos. In: OLINTO, Heidrun Krieger; SCHOLLHAMMER, Karl Erik (org.). Literatura e mídia. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2002.
LANDOW, George P. Hipertexto 3.0: La teoría crítica y los nuevos medios en una época de globalización. Barcelona: Paidós Comunicación, 2009. Tradução de: Antonio José Antón Fernández.
LÉVY, Pierre. A metáfora do hipertexto. In: LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: O futuro do pensamento na era da informática. São Paulo: Ed. 34, 2004. Cap. 1. p. 13-45. Tradução de: Carlos Irineu da Costa.
MANOVICH, Lev. El lenguaje de los nuevos medios de comunicación: La imagen en la era digital. Barcelona: Paidós Comunicación, 2005. MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Ed. Unesp, 2003. Tradução de: Elissa Khoury Daher e Marcelo Fernandez Cuzziol.